quinta-feira, abril 26, 2007

O anão que esconde os movimentos do gigante

Num gigante gasoso, coberto por uma espessa camada de nuvens, as imagens vão mostrar sobretudo a dinâmica das nuvens, não permitindo inferir com exactidão o período de rotação do interior do planeta. Os gigantes gasosos possuem no entanto campos magnéticos relativamente poderosos, e fenómenos relacionados com esses campos magnéticos produzem emissões esporádicas e periódicas de ondas rádio. Em planetas como Júpiter, Úrano e Neptuno a periodicidade dessas emissões é usada como indicador do período de rotação interno desses planetas. Em Saturno as Voyager descobriram nos anos 1980 emissões rádio muito intensas, com comprimentos de onda da ordem do quilómetro, que na altura apresentavam uma modulação de 10 horas, 39 minutos, e 24 ± 7 segundos, valor que passou a ser aceite como o período de rotação de Saturno. Só que as sondas espaciais Ulysses e a Cassini verificaram depois que este período apresentava variações da ordem de 1% em escalas de tempo de alguns anos. Isto levanta um problema, pois a gigantesca inércia do planeta não permitiria variações desta ordem em intervalos de tempo tão curtos. É aí que entra a influência daquela lua pequenina que se pode ver nesta imagem. [... ler mais]

Aquela coisa que parece insignificante face a Saturno, é Encélado, um cliente antigo neste blog, que dedicou já várias contribuições às suas famosas listras de tigre, e aos seus famosos géiseres que expelem gelo e vapor de água em quantidades significativas. Para refrescar a memória aos mais esquecidos, ou para elucidar os novos leitores, as contribuições anteriores podem ser consultadas aqui e aqui.

O inesperado efeito de Encélado nas nossas determinações da duração do dia em Saturno é explicado por Gurnett e colegas num artigo recente na Science (ref1). Numa tradução livre do resumo do artigo de Gurnett e colegas:

Mostramos que o plasma e os campos magnéticos das regiões internas do disco de plasma de Saturno possuem uma rotação em sincronia com o período de modulação da emissão rádio quilométrica de Saturno, que varia no tempo. Esta relação sugere que a modulação no rádio tem as suas origens na região interior do disco de plasma, muito provavelmente a partir de uma instabilidade convectiva gerada centrifugamente e um afluxo de plasma para o exterior que desliza lentamente em fase relativamente ao período de rotação interna de Saturno. A taxa deste deslizamento é determinada pelo acoplamento electrodinâmico do disco de plasma de Saturno e pela força de atrito exercida pela sua interação com o toro de gás neutro de Encélado.

Este resumo pode parecer um pouco confuso, mas o corolário é simples: as modulações da emissão de rádio provêm de um anel exterior de plasma , que orbita em torno de Saturno, e cujo período de rotação é afectado pelo gás emitido por Encélado. Para aqueles que pretendam compreender melhor a coisa, é preciso fazer uma pequena incursão pela física de plasmas. Não se preocupem, vou tentar fazer isto da forma menos dolorosa possível e sem recurso a equações. Se preferirem podem ir logo para a última frase do último parágrafo.

Como referi no início, Saturno tem um campo magnético, que se assume estar perfeitamente alinhado com o eixo de rotação, ou seja os pólos norte e sul definidos pela rotação do planeta são também os pólos magnéticos. Para lá dos famosos anéis, Saturno possui ainda aquilo que se chama um anel interior de plasma. Um plasma é um gás electrificado, ou seja formado por partículas com carga eléctrica não nula, electrões e iões. Na presença de um campo magnético, as partículas electrificadas são obrigadas a espiralar em torno das linhas de de força desse campo magnético, pelo que estão de certa forma confinadas e seguem as movimentações do campo magnético. A velocidade de rotação do plasma é por sua vez suficientemente elevada para que a força centrífuga, seja bastante superior à atracção gravítica do planeta concentrando assim o plasma num disco na região equatorial de Saturno.

Segundo o que Gurnett e colegas discutem no seu artigo, a presença de Encélado baralha bastante as coisas, no que se refere à periodicidade das movimentaçs deste anel de plasma. O material expelido por Encélado é originalmente neutro, ou seja encontra-se sob a forma de átomos e moléculas, e forma um toro (algo com a forma de um donut) correspondente à órbita dessa lua. O material neutro não é afectado pelos campos magnéticos, só que o gás no toro vai sendo lentamente ionizado, e passa então a ficar sob a acção dos campos magnéticos ligados a Saturno. As coisas estão esquematizadas na imagem abaixo, que mostra uma visão para um observador acima do pólo norte de Saturno:

A amarelo mostram-se os trajectos correspondentes ao fluir do plasma. A passagem do fluxo de plasma longo do toro de Encélado significa um progressivo aumento da densidade: o material recém ionizado é "apanhado" e arrastado no fluir do material pré-existente. Como consequência dessa variação de densidade formam-se e mantêm-se duas células convectivas no disco de plasma, com padrões de circulação organizados. O processo em si é algo complicado, e sem fórmulas terei que ficar por aqui. Falo nisso apenas porque a imagem que ilustra o processo é particularmente bonita.

O afluxo contínuo de novo material proveniente de Encélado pesa de tal forma no campo magnético que o atrasa em relação ao movimento de rotação do planeta. Ou seja, a entrada regular de novo plasma no sistema provoca um desfasamento entre as propriedades de rotação do disco de plasma e do planeta. Como a expulsão de material por Encélado não é constante, este modelo explica as irregularidades nos períodos da emissão quilométrica de Saturno. Claro que esta não é necessariamente a palavra final nesta questão, mas é bastante interessante. A moral da história é que o período de rotação do interior de Saturno permanece um mistério.

Ficha técnica
Imagem de Encélado retirada desta página da NASA.

Referências
(ref1) D. A. Gurnett, A. M. Persoon, W. S. Kurth, J. B. Groene, T. F. Averkamp, M. K. Dougherty, and D. J. Southwood (2007). The Variable Rotation Period of the Inner Region of Saturn's Plasma Disk. Science 316, 442. Laço DOI.

segunda-feira, abril 23, 2007

O agitar das castanhas num asteróide

Eis-me então de volta para falar da relação entre as castanhas do Pará e a Astronomia. Tem tudo que ver com este objecto, cujo forma estranhamente até faz lembrar uma castanha do Pará. Os leitores mais antigos lembrar-se-ão de que já falei desta coisa anteriormente, trata-se do asteróide Itokawa, que foi visitado por uma sonda chamada Hayabusa. Um dos aspectos que chama a atençao neste asteróide, para lá da ausência de crateras de impacto, é que partes da sua superfície apresentam uma textura suave, enquanto outras partes estão cheias de calhaus de dimensões variadas. Segundo alguns autores tem tudo que ver com o tal efeito das castanhas do Pará. [... ler mais]

O estudo sobre as características da superfície do Itokawa é da autoria de
Hideaki Miyamoto e colegas e aguarda publicação na revista Science (ref1). Baseia-se em fantásticas e detalhadas imagens da Hayabusa com uma resolução de 6 milímetros por pixel. Numa tradução livre do resumo:

Imagens de alta resolução da superfície do asteróide Itokawa da missão Hayabusa mostraram que se encontra coberto com calhaus não consolidados com dimensões da ordem do milímetro e maiores. A localização e as características morfológicas destes calhaus indicam que o Itokawa sofreu vibrações consideráveis, que poderão ter desencadeado processos de tipo granular no seu ambiente de microgravidade, seco e no vácuo. Este processos provavelmente incluiram convecção granular, migrações tipo deslizamentos, e separação de partículas, resultando na segregação dos calhaus finos em área de mínimos de potencial. Os processos granulares tornam-se processos importantes de modificação de superfície por causa do pequeno tamanho do Itokawa, implicando que podem ocorrer noutros asteróides pequenos caso tenham rególito.

O rególito (acho que Brasil não se usa acento) é na Terra a camada de material modificado pelas intempéries que cobre camadas rochosas não alteradas. Nos objectos astronómicos sem atmosfera o rególito pode apesar de tudo formar.se, devido a coisas como impacto de micrometeoritos e fenómenos de índole térmica. Basicamente o rególito é formado por todos os fragmentos de materiais daquilo a que se chama o solo. No Itokawa esta camada de rególito é formada por materiais que vão desde poeiras mais ou menos finas a materiais mais grosseiros, que estão fracamente presos à superfície pela baixa gravidade do Itokawa. Vibrações neste material levarão assim a um efeito semelhante ao que se observa numa taça de aperitivos quando agitada: as castanhas do Pará sobem. No Itokawa a gravidade não é tão simples como na Terra, e a separação em zonas "lisas" e zonas irregulares reflecte a variação da gravidade nas várias regiões do asteróide. A pista que permitiu aos cientistas assumirem este tipo de explicação tem a ver com o facto de os constituintes do rególito do Itokawa se mostrarem alinhados, correspondendo as direcções de alinhamento aos contornos da força de gravidade. Isso pode ver-se por exemplo na assombrosamente detalhada imagem abaixo:

É notória a migração do material mais fino, seguindo a direcção do canto inferior esquerdo para o canto superior direito, correspondendo ao que se infere para a variação da força da gravidade. Notem ainda a coisa com formato circular em baixo à esquerda. Eu referi no início a ausência de crateras de impacto. Pois bem, deveria ter dito, a quase ausência, esta é uma cratera de impacto, com os bordos já a desfazerem-se, mas ainda identificável.

A Hayabusa não se limitou a fotografar, tocou mesmo na superfície do Itokawa tendo recolhido amostras de solo. Iniciou este mês a sua viagem de regresso à Terra. que deverá demorar cerca de três anos.

Ficha técnica
Imagens cortesia de ISAS/JAXA e Universidade de Tóquio. Podem ser obtidas por exemplo, no comunicado de imprensa do Planetary Science Institute.

Referências
(ref1) Hideaki Miyamoto, Hajime Yano, Daniel J. Scheeres, Shinsuke Abe, Olivier Barnouin-Jha, Andrew F. Cheng, Hirohide Demura, Robert W. Gaskell, Naru Hirata, Masateru Ishiguro, Tatsuhiro Michikami, Akiko M. Nakamura, Ryosuke Nakamura, Jun Saito, Sho Sasaki (2007). Regolith Migration and Sorting on Asteroid Itokawa. Science. Laço DOI.

Subir como uma castanha-do-Pará

Esta coisa é uma castanha do Pará, o fruto da castanheira-do-Pará, uma árvore cujo nome científico é Bertholletia excelsa. Não se trata de um engano, este texto não se destinava à versão do Cais de Gaia que trata de temas de Biologia. Esta contribuição pertence mesmo aqui, na secção relativa aos asteróides. Tem tudo a ver com uma coisa a que os anglo-saxónicos chamam "The Brazil nut effect". Brazil nut é o nome em língua inglesa para castanha do Pará, e o tal efeito é algo que ultrapassa as questões de frutos secos. Para compreenderem o efeito tudo o que têm que fazer é adquirir coisas como amendoins, amêndoas, cajus e claro as castanhas do Pará. Misturem tudo e comecem então a agitar o recipiente. [... ler mais]

O resultado final é algo semelhante ao que se observa na imagem abaixo: as castanhas do Pará migram para o topo do recipiente.

Este é que é o efeito da castanha do Pará: dada uma mistura de materiais de várias dimensões, sujeitas a movimentos de tipo vibratório, as partículas maiores tendem a acabar em cima. Assim de repente pode parecer que vai contra o senso comum, mas há vários aspectos em jogo. Temos por um lado percolação, isto é, os materiais mais pequenos escapam e ocupam os interstícios dos mais maiores, ocupando progressivamente o fundo e levando à convecção dos maiores isto é, à sua subida. O processo em si é mais complicado do que isso, e tem aplicações prácticas em várias áreas, como ciência dos materiais e Geologia, incluindo fenómenos geológicos em corpos extraterrestres. O efeito pode explicar as observações algo peculiares da superfície de um asteróide, algo de que falarei na próxima contribuição.

segunda-feira, abril 16, 2007

Os ventos enrolados de Marte

O pequeno veículo robotizado Espírito continua a deambular lenta, mas seguramente, pela paisagem marciana. No dia 26 de Fevereiro de 2007 registou um fenómeno relativamente comum em Marte e que, como eu referi numa contribuição anterior, poderá desempenhar um papel importante no fenómeno de aquecimento global marciano: um turbilhão poeirento, um remoinho que se propagou velozmente no campo de visão do veículo. O Espírito fotografou, a NASA juntou as imagens para fazer um pequeno filme, e disponibilizou a animação resultante nas suas páginas na internet. [... ler mais]

Eis então a sequência animada:



Ficha técnica
Créditos da animação: NASA/JPL-Caltech. Animação e inspiração para o texto a partir desta página da NASA.


quinta-feira, abril 12, 2007

O briho da Terra

A missão Clementine que orbitou a Lua durante alguns meses durante o início de 1994, incluía duas câmeras para observação das estrelas, que serviam sobretudo para ajudar na navegação da sonda, mas que possibilitaram também a obtenção de algumas panorâmicas espectaculares da Lua. Esta é uma dessas imagens, com alguns pormenores que merecem atenção. O Sol está do outro lado da Lua, ou seja, a Clementine está na zona de sombra. A claridade que se vê nas bordas da Lua é nada mais nada menos que a coroa solar, isto é, a camada quente e muito ténue da atmosfera do Sol, que se pode observar durante os eclipses totais na Terra. No alto da imagem vê-se ainda Vénus. Mas o aspecto para o qual chamo a atenção é o brilho da superfície da Lua. É que a fonte de Luz que nos permite ver os detalhes nessa superfície é nada mais nada menos que luz vinda da Terra. Vou aproveitar esta imagem para voltar a temas relativos ao clima terrestre. [... ler mais]

A superfície da Terra, as nuvens, os aerossóis provenientes da actividade humana e de fenómenos naturais, reflectem parte da luz incidente impedindo-a assim de aquecer o planeta. Os processos são obviamente complicados e é difícil de separar causas de efeitos, contudo um modelo do clima deve incluir ou reproduzir essas variações de forma consistente. O problema é que as medições que possuímos se referem a períodos muito curtos, há intervalos sem dados, e existem problemas sérios de calibração dos vários instrumentos.

Na contribuição sobre o aquecimento global de Marte referi que uma das formas de obter o albedo da Terra, isto é a fracção da luz incidente que incide no planeta e que é reflectida, é usar o brilho da Terra na zona de sombra da Lua. A luz que a Terra envia para a Lua é proporcional ao albedo da Terra, e por sua vez o brilho que a Lua envia de volta é igual à potência luminosa recebida da Terra multiplicada pelo albedo da Lua. Isto significa que, após um processamento algo complicado, se pode usar este brilho para estimar o albedo da Terra. Foi isso que fizeram Pallé e colegas num trabalho cujos resultados foram publicado em 2004 na revista Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Nós correlacionámos um período em que há sobreposição de medições de reflectância da Terra (de 1999 até meio de 2001) com observações de satélite de propriedades globais das nuvens para construir a partir das últimas uma medida por aproximação da reflectância global da Terra em comprimentos de onda curtos. Esta aproximação mostra um decréscimo continuado da reflectância da Terra de 1984 a 2000, com uma queda pronunciada de significado climatológico após 1995. De 2001 a 2003, apenas dados do brilho da Terra estão disponíveis e eles indicam uma inversão completa do declínio. Compreender como as causas desta mudanças ao longo de décadas se distribuem entre variabilidade natural, forçamento directo, e mecanismos de retroalimentação é fulcral para atribuir e prever as mudanças climáticas.

Na verdade os autores apenas possuíam medições do brilho da Terra referentes a cinco anos. O que fizeram foi socorrerem-se de um indicador indirecto, usando medições de propriedades das nuvens, que associaram de forma cautelosa às variações medidas para o brilho da Terra, durante um período em que possuíam ambos os conjuntos de dados. Isto permitiu-lhes estender as estimativas do albedo a um período de 20 anos. O resultado é de certa forma surpreendente, um aumento recente da reflectância (albedo) significaria menos energia incidente, logo esperar-se-ia redução de temperatura e não aumento, como se tem vindo a observar nos últimos anos. A menos, é claro, que o processo responsável pelo aumento da reflectância envolva um qualquer tipo de efeito estufa.

Este trabalho é uma primeira aproximação a um problema importante, que dadas as limitações nas observações directas teve que se socorrer de uma abordagem indirecta. Mas como todas as abordagens novas está sujeita a discussão, nos seus pressupostos, na análise dos dados, e nos resultados. Como é hábito em ciência tudo isto é revisto e discutido em detalhe. Não surpreende por isso que um estudo mais recente baseado em medições directas de albedo da Terra, por sondas espaciais, e sem recurso a expedientes indirectos como o brilho da Lua, pareça não concordar com o estudo de Pallé e colegas. Falarei disso na próxima contribuição.

Ficha técnica
Imagem da Clementine a partir desta página da NASA.

Referências
(ref1) E. Pallé, P. R. Goode, P. Montañés-Rodríguez, S. E. Koonin (2004). Changes in Earth's Reflectance over the Past Two Decades. Science Vol. 304. no. 5675, pp. 1299-1301. Laço DOI

segunda-feira, abril 09, 2007

Aquecimento global extraterrestre

Alguns amigos meus falaram-me com um certo prazer perverso de um estudo que, segundo eles, talvez ponha em causa essa coisa da actividade humana como causadora do aquecimento global. Já que o tema do mês na Roda de Ciência é o aquecimento global, decidi que valia a pena falar desse tal estudo.

Sucede que algures no sistema solar há um planeta que tem perdido quantidades significativas de uma das suas calotas polares. Estudos científicos apontam como causa desse desaparecimento um fenómeno de aquecimento global que teria elevado a temperatura média de superfície desse planeta qualquer coisa como 0.65 graus Celsius nos últimos 20 anos. Qual é esse planeta? Pois bem, trata-se do quarto planeta a contar do Sol. Não, não é um engano, Marte parece atravessar de facto um período de aquecimento global estranhamente parecido ao da Terra. [... ler mais]

O artigo que discute os problemas de temperatura marcianos é da autoria de Lori Fenton e colegas e foi publicado recentemente na revista Nature (ref1). Crânios à parte, em Marte a culpa não pode ser dos humanos e das suas emissões de gases de efeito estufa. As coisas parecem estar associadas a mudanças na distribuição da poeira na superfície do planeta. Numa tradução livre do resumo:

Ao longo de centenas de anos, os cientistas seguiram as mudanças na aparência de Marte, primeiro através de desenhos à mão e mais tarde através de fotografias. Devido a este registo histórico, sabe-se há muito tempo que muitos dos padrões clássicos de albedo têm mudado em aparência ao longo do tempo.

O que é o albedo? Da definição de planeta que se aprende nos primeiros anos de escola todos nos lembramos que no essencial refere que são astros que não possuem luz própria e que o seu brilho provém da reflexão da luz do Sol. Dito de outra maneira, os planetas brilham essencialmente com luz emprestada. O albedo é dado pela intensidade da luz emitida pelo planeta dividida pela intensidade da luz que lhe chega do Sol. Trata-se da fracção de energia incidente no planeta que é reflectida de volta.
Variações do albedo da superfície de Marte ao longo de décadas são geralmente atribuídas à remoção e deposição de pequenas quantidade de poeira relativamente brilhante na superfície. Observaram-se grandes extensões da superfície (até 56 milhões de quilómetros quadrados) a escurecerem ou clarearem por 10 por cento ou mais. Não se sabe, contudo, como essas mudanças no albedo irão afectar a circulação dos ventos, o transporte de poeira, e os processos de auto-alimentação entre esses processos e o clima marciano.

O estudo refere dois conjuntos de medições do albedo na superfície de Marte, que se ilustram na imagem abaixo. No painel de cima mostram-se dados do instrumento Thermal Emission Spectrometer (TES) na missão espacial Mars Global Surveyor obtidos nos anos 1999 e 2000. A escala de cores foi escolhida por forma a reproduzir o aspecto algo ferrugento da superfície de Marte. No painel de baixo mostram-se as diferenças dessas observações em relação a observações obtidas pelas sondas Viking cerca de 20 anos antes (1976-1978).

Na figura de baixo os tons de azul escuro indicam regiões que perderam brilho (escureceram), enquanto que os tons mais próximos do amarelo indicam regiões que reflectem uma fracção maior da luz incidente (clarearam). É evidente a partir do painel de baixo que Marte sofreu um processo quase generalizado de escurecimento, mais intenso a latitudes mais elevadas, com apenas umas poucas regiões a mostrarem clareamento significativo.

Ora qual o impacto que estas mudanças de albedo poderão ter no clima marciano? Para responderem a essa questão os autores do estudo usaram modelos atmosféricos, se bem que algo diferentes dos que se usam para a Terra. Em Marte não há oceanos nem cobertura vegetal, e as nuvens não têm a importância que têm na Terra.
Apresentamos aqui as previsões de um modelo de circulação geral de Marte, indicando que as alterações interanuais observadas no albedo influenciam fortemente o ambiente marciano. Os resultados indicam um aumento da intensidade dos ventos nas áreas escurecidas recentemente e um decréscimo das intensidades do vento em zonas que clarearam, produzindo um sistema de retroalimentação positiva no qual as mudanças do albedo intensificam os ventos que produzem as mudanças. As simulações também prevém um aquecimento global anual das temperaturas do ar à superfície de aproximadamente 0.65 K,

O texto do resumo não é claro, mas os autores esclarecem, numa pequena adenda ao artigo, que os tais 0.65 kelvin (iguais a 0.65 graus centígrados) se referem ao período de 20 anos, não à variação anual. O mecanismo de variação da temperatura é simples: a rocha escura (com pouca poeira brilhante) retem mais calor, que aquece a atmosfera. A atmosfera aquecida por sua vez leva a ventos mais fortes que por sua vez levam ao aparecimento de turbilhões que carregam poeira e a depositam num número reduzido de bolsas, descobrindo mais rocha escura.

Eis aqui abaixo uma figura que compara as medições da variação do albedo (a imagem) com as variações previstas para a temperatura (os contornos a vermelho):

Como podemos ver nas regiões de aumento do albedo (tons de amarelo) o modelo obtém variações de temperatura negativas, enquanto nas regiões escuras o modelo indica aumentos de temperatura. O aquecimento é sentido em particular nas zonas próximas dos pólos, e aí os autores oferecem evidência observacional que está de acordo com os resultados do modelo:
Para além disso, os aumentos previstos nas temperaturas do ar no verão a latitudes elevadas no sul contribuiriam para o retrocesso rápido e estável que se tem observado no gelo residual do pólo sul durante os quatro últimos anos marcianos. Os nossos resultados sugerem que as mudanças de albedo documentadas afectam o clima recente e os padrões meteorológicos a larga escala em Marte, e que as variações de albedo são uma componente necessária de futuros estudos de clima e da atmosfera.

Na Terra o albedo é uma quantidade variável que vai depende de uma série de coisas óbvias, como a extensão de neve e gelo, da cobertura e tipos de nuvens, da cobertura vegetal. É no entanto difícil de estimar. Uma das formas de determinar as mudanças do albedo terrestre é, por estranho que possa parecer, usar as regiões da Lua nas quais seja noite e que recebam luz da Terra.

Como disse no início da contribuição, há um estranho paralelismo com a situação na Terra. Embora os autores do artigo não o façam, algumas das pessoas com as quais falei levaram esse paralelismo ao passo lógico seguinte: atribuir o aquecimento nos dois planetas a uma mesma causa. Sinto, no entanto, que essa tentação deve ser evitada. A atmosfera de Marte é muito diferente da da Terra, e o mecanismo de aquecimento também. Em particular pode tratar-se de um fenómeno cíclico, iniciado e interrompido pelas grandes tempestades de poeira que de vez em quando varrem Marte.

O clima terrestre é afectado por uma míriade de influências distintas, e enquanto algumas, como o forçamento pelo dióxido carbono, são conhecidas com razoável precisão, coisas como os forçamentos por aerossóis e os efeitos da actividade solar são algo incertos. Os resultados de Marte poderiam mostrar-se relevantes para o problema do aquecimento terrestre caso se conseguisse mostrar que tinham a ver com algum tipo de modificação na actividade solar. No entanto, não se conhece neste momento nenhum mecanismo de tipo causa-efeito que envolva a variabilidade solar que explique as observações. Sem um mecanismo físico por trás, uma coincidência deve ser encarada apenas como isso. Claro que as coisas poderão mudar com mais trabalhos sobre este tema, e esta é mais uma razão para continuarmos a estudar o que se passa em Marte.

Ficha técnica
Imagem de Marte no início da contribuição cortesia de NASA/JPL/Malin Space Science Systems retirada desta página da NASA.

Referências
(ref1) Lori K. Fenton, Paul E. Geissler & Robert M. Haberle (2007). Global warming and climate forcing by recent albedo changes on Mars. Nature 446, 646-649. Laço DOI.

COMENTÁRIOS via roda de ciência.

quinta-feira, abril 05, 2007

Um vulcão à luz de Júpiter com uma Europa em crescente

A missão da NASA a Plutão e à cintura de Kuiper, a New Horizons, tem nas suas páginas um espólio bastante interessante de imagens de Júpiter e das suas luas, tiradas durante a aproximação recente a este planeta. Para lá de um vasto conjunto de imagens com objectivos científicos bem definidos, a New Horizons tirou algumas só pela beleza da coisa. Para isso lançou uma consulta na internet pedindo sugestões. Esta foi uma das escolhidas, enviada por Richard Hendricks, um entusiasta de Austin no Texas. A fotografia, tirada no dia 2 de Março de 2007, é de facto uma boa escolha, com óbvio valor artístico. Há vários motivos que tornam esta imagem notável, a começar por aquela luzinha azul sobre o ponto vermelho. Essa luzinha é a pluma de um vulcão extraterrestre. [... ler mais]

A fabulosa pluma azul encontra-se sobre a lua de Júpiter chamada Io, e pertence a um vulcão chamado Tvashtar, estendendo-se cerca de 300 quilómetros acima da superfície. Na imagem onseguem ver-se mais duas plumas azuis, menos imponentes é certo, mas interessantes na mesma. Se imaginarmos que Io é o mostrador de um relógio, então Tvashtar estaria na posição que o ponteiro ocuparia às 11 horas, enquanto um outro vulcão, Prometeu estaria às 9 horas, e finalmente um terceiro vulcão Amirani algures entre os outros dois. As plumas parecem azuis devido à difusão da luz pelas partículas de poeira emanadas do vulcão. O vermelho que se vê na base do Tvashtar é, tal como se podia esperar, lava.

Io aparece como um crescente, com um lado iluminado pelo Sol mais brilhante, embora o lado que corresponde à noite também seja visível. A luz que ilumina esse lado vem de Júpiter, que se encontra à direita, fora do campo de visão do instrumento que tirou a imagem. À direita da imagem pode ver-se Europa, que apresenta também uma face iluminada pelo Sol, mas a outra face completamente escura, isso porque essa face não está virada para Júpiter. A perspectiva da imagem engana, as duas luas parecem próximas, mas estavam a 790,000 quilómetros uma da outra. Para referência, a sonda espacial estava a 4.6 milhões de quilómetros de Io e 3.8 milhões de quilómetros de Europa quando tirou estas imagens.

Convém dizer que a cor da imagem não é exactamente a que seria vista pelo nossos olhos se olhássemos directamente para Io sem filtros. Os filtros usados para obter esta imagem estão ligeiramente desviados para o infravermelho. Os nossos olhos detectariam uma cor mais pálida em Europa que em Io. Após a Páscoa farei aqui um apanhado das imagens que a New Horizons tirou durante a sua aproximação a Júpiter, algumas delas com muito maior detalhe, e falarei um pouco desta missão.

Ficha técnica
Imagem inspiração para o texto da NASA/Johns Hopkins University Applied Physics Laboratory, Southwest Research Institute, a partir desta página.

terça-feira, abril 03, 2007

Um favo no Pólo Norte

Estas são imagens de Saturno obtidas pelos intrumentos da Cassini, a 21 de Junho de 2004, com filtros que deixam passar luz em três intervalos de comprimentos de onda distintos, todos na banda do infravermelho. Estas imagens mostram bem que consoante a zona do espectro luminoso que se observa o aspecto de Saturno é muito diferente. Na imagem obtida a 1.3 micrómetros (milésimos de milímetro) quer Saturno, quer os seus aneis reflectem a luz de forma intensa. A 2.4 micrómetros, os anéis continuam a ser fortemente reflectores mas o metano na atmosfera de Saturno absorve quase toda a luz neste comprimento de onda. Ora há uma diferença óbvia entre estes comprimentos de onda e o seguinte, os 5.1 micrómetros. Reparem que nos outros dois se veêm efeitos de sombra devidos à fonte de energia luminosa, neste caso o Sol. A 5.1 micrómetros a fonte de radiação é o próprio Saturno, ou mais exactamente o brilho térmico proveniente do seu interior. Aqui observa-se um pouco inverso do que se via a 2.4 micrómetros. A 5.1 micrómetros os anéis, compostos por gelo, absorvem a radiação e são escuros, enquanto Saturno é muito brilhante, com uma luminosidade que depende dos padrões de nuvens na sua atmosfera. Os 5.1 micrómetros são assim particularmente adequados quando se querem observar coisas em zonas, como o pólo norte de Saturno, que se encontram à sombra do longo inverno saturniano. Os cientistas fizeram isso e observaram algo que se conhecia desde os tempos das Voyager no inínio dos anos 1980, mas não deixa de ser impressionante ver que ainda está lá. Esperava ver isto há já algum tempo e a Cassini não me desapontou: Saturno tem um hexágono quase perfeito no pólo norte. [... ler mais]

Antes de mostrar a imagem do pólo não resisto a mostrar o belíssimo panorama que se obtém quando se combinam as três imagens acima atribuindo a uma intensidade no vermelho, a outra no verde, e à outra no azul. As cores são falsas mas o efeito é deslumbrante:

Como eu referi, as Voyager tinham observado o pólo norte de Saturno, mas de uma perspectiva pouco favorável, de esguelha, e não em comprimentos de onda sensíveis ao brilho térmico do planeta. Vejamos então a primeira a capturar todo o pólo norte com uma perspectiva adequada, obtida em 2006, no dia 29 de Outubro. Ei-la, é de facto surpreendente:

A imagem foi processada para aumentar o contraste. O que estamos a ver é o brilho térmico do interior do planeta e a forma como é afectado pela camada de nuvens da atmosfera de Saturno. As nuvens mais profundas aparecem mais escuras na imagem pois bloqueiam a radiação neste comprimento de onda (5 micrómetros). O hexágono é por isso uma clareira nas nuvens de superfície, que se estende na atmosfera pelo menos 75 quilómetros abaixo das nuvens mais altas. As imagens obtidas ao longo de vários dias mostram que se trata de algo estacionário e com raízes profundas na atmosfera do planeta. Eu tinha falado anteriormente do olho tempestuoso de Saturno no pólo sul, mas esta coisa é ainda mais estranha.

Ficha técnica
Imagens e inspiração para o texto tiradas desta e desta páginas da NASA.

quarta-feira, março 07, 2007

Ó Titã, hoje és nevoeiro...

"Vendo um Sol que se põe em Titã", é este o tema da nova passagem da Sonda espacial Cassini pela gelada lua de Saturno da qual eu já falei aqui por tantas vezes. A passagem, com o número 26, vai ocorrer no dia 10 de Março de 2007, e podemos antecipar coisas interessantes. A sonda vai obter imagens da região logo acima do equador de Titã, fazer mapas da temperatura à superfície, e estudar os movimentos das nuvens. A Cassini irá também recolher material do topo da atmosfera de Titã para determinar a sua constituição. [... ler mais]

Esta é uma boa ocasião para mostrar uma espectacular panorâmica obtida através dessa atmosfera numa passagem anterior, a 26 de Dezembro de 2006. Nesta imagem a Cassini espreita o pólo Sul de Saturno, iluminado pelo Sol, pra lá da borda brumosa de Titã.

É uma imagem muito bonita. Foi obtida combinando fotografias tiradas com os filtros azul, verde e vermelho, pelo que é muito próxima das cores naturais, isto é, daquilo que seria visto pelos nossos olhos sem o auxílio de instrumentos.

Ficha técnica
Imagens e inspiração para o texto retirados desta e desta páginas da NASA.

quinta-feira, março 01, 2007

Uma ilha extraterrestre

Os lagos que se descobrem em Titã são cada vez maiores. A Cassini efectuou um sobrevôo a Titã em 22 de Fevereiro de 2007, indo bastante perto do pólo norte dessa lua de Saturno. Como esperado, observou mais lagos. Estes são verdadeiros gigantes e possuem mesmo ilhas. Esta imagem, cujo aspecto é já algo familiar, obtida pelo istrumento de radar mostra uma ilha mesmo no meio de um dos maiores lagos vistos até agora em Titã. O centro desta imagem está a cerca de 79 graus norte e permite confirmar que quanto mais próximo do pólo maiores estas coisas ficam. Já agora a imagem está orientada com o norte à esquerda.[... ler mais]

Para avaliarem as dimensões desta extensão de metano líquido, basta dizer que a ilha que se vê no meio do lago tem 90 km por 150 km, ou seja é tão comprida como o Algarve mas tem cerca do dobro da largura. É mais ou menos do tamanho da Ilha Grande do Havai. Dunas, lagos, ilhas, Titã tem tudo para ser um destino turístico de eleição.

Ficha técnica
Imagem e inspiração para o texto a partir desta página da NASA.