sexta-feira, março 10, 2006

Os geysers de Encélado

Muitos dos mundos rochosos que orbitam os vários sistemas planetários no sistema solar são no fundo fósseis. Excepto pela ocasional colisão com um asteróide ou cometa, que origina mais uma cratera que se soma ao em geral grande número que estes corpos ostentam, esses objectos mantêm-se imutáveis há muitos milhões de anos. Há contudo excepções. Io é um mundo de paisagens sempre em mutação, com vulcões impressionantes. Titã tem uma atmosfera e um ciclo de metano. Um outro exemplo acaba de se juntar à lista. [... ler mais]

A revista norte-americana Science dedica um número especial de Março a observações da sonda espacial Cassini de um dos satélites de Saturno, Encélado. A imagem acima mostra o tamanho relativo desta lua num mapa da Terra. Com um diâmetro de apenas 504 km não cobriria o Reino Unido. Se o mapa fosse deslocado um pouco para Sul poder-se-ia ver que o diâmetro caberia na Península Ibérica. Chamo a vossa atenção na imagem acima para algumas estrias que se veêm na parte inferior direita de Encélado. Estas características da lua são conhecidas por "listras de tigre" e os cientistas sabiam que o gelo que as recobre é mais recente que o gelo que recobre o resto do satélite.

Encélado orbita mesmo no meio do anel E de Saturno, um anel azul, largo e difuso formado por partículas pequenas. Devido à ausência de fragmentos de maiores dimensões, os astrónomos suspeitavam há muito tempo que as partículas do anel E emanavam de Encélado. Os cientistas esperavam por isso observar fenómenos criovulcânicos em Encélado e aguardavam com alguma ansiedade a aproximação da Cassini a essa lua. Em três sobrevôos em Fevereiro, Março e Julho de 2005, os instrumentos da sonda espacial Cassini observaram a superfície do satélite e fizeram uma série de medições. Os resultados superaram as expectativas. Do volume especial da Science houve dois artigos que me chamaram particularmente a atenção e que estão relacionados com a imagem abaixo.


As imagens mostram Encélado, fotografado quando se encontrava entre o Sol e a sonda. A imagem da esquerda é numa escala de cinzentos proporcional à intensidade luminosa, e permite ver uma série de jactos finos numa região que corresponde às "listras de tigre". A da direita é numa escala de cor artificial para ampliar o contraste e permitir ver melhor o material no pólo sul do satélite.

O primeiro dos artigos da Science que me interessou particularmente é da autoria de Candice J. Hansen e colegas (ref1) e é sobre a natureza dos jactos mostrados acima. Numa tradução livre do resumo:

A sonda espacial Cassini voou perto da pequena lua de Saturno, Encélado, três vezes em 2005. O Espectrógrafo de Imagens Ultravioleta de Cassini observou ocultações estelares nos dois voos próximos que confirmaram a existência, composição, e natureza regionalmente confinada de uma pluma de vapor de água na região do pólo sul de Encélado. Esta pluma fornece uma quantidade adequada de vapor de água para reabastecer as perdas do anel E de Saturno e para ser a fonte dominante de OH neutro e oxigénio atómico que enchem o sistema saturniano.

Este é um resultado excitante, os jactos são no fundo geysers na superfície de Encélado. É óbvio que para estas coisas se formarem é necessária uma fonte de calor. É aí que entra o segundo artigo, de J. R. Spencer e colegas (ref2). Numa tradução livre do resumo:
A sonda espacial Cassini completou três dias de voos próximos da enigmática lua de Saturno, Encélado, entre Fevereiro e Julho de 2005. No terceiro e vôo mais próximo, em 14 de Julho de 2005, vários instrumentos de Cassini detectaram evidência de actividade endógena em curso numa região centrada no pólo sul de Encélado. A região polar é a fonte de uma pluma de gás e poeira, que provavelmente emana de depressões quentes e proeminentes vistas na superfície.

Até aqui é um resumo do que se sabia com o artigo acima. O melhor vem a seguir:
O Espectrómetro Composto Infravermelho (CIRS) da Cassini detectou 3 a 7 gigawatts de emissão térmica através das depressões polares a temperaturas de 145 kelvin ou mais elevada, fazendo de Encélado apenas o terceiro planeta sólido conhecido - para além da Terra e de Io - que é suficientemente geologicamente activo para o seu calor interno poder ser detectado por observações remotas. Se a pluma é gerada por sublimação de gelo de água e se as fontes de sublimação são visíveis pelo CIRS, então são exigidas temperaturas de sublimação de pelo menos 180 kelvin.

Só para referência, zero graus celsius correspondem a 273 graus kelvin, pelo que 180 kelvin são 93 graus celsius negativos. Mas temperaturas muito superiores deverão existir abaixo da superfície. Este artigo é particularmente excitante, pois mostra que é possível que haja água líquida algures no interior do planeta. Havendo calor interno e água líquida, há a possibilidade de estarem reunidas as condições para a existência de formas de vida. É óbvio que este é o tópico em que os meios de comunicação vão pegar, já estou a ver manchetes do tipo "vida numa lua de Saturno?", mas compreende-se.

Ficha técnica
O comunicado de imprensa e imagens podem obter-se a partir das páginas da Cassini no JPL.

Referências
(ref1) Candice J. Hansen,L. Esposito, A. I. F. Stewart, J. Colwell, A. Hendrix, W. Pryor, D. Shemansky, R. West (2006). Enceladus' Water Vapor Plume. Science, Vol. 311. no. 5766, pp. 1422 - 1425. Laço DOI.
(ref2) J. R. Spencer, J. C. Pearl,2 M. Segura, F. M. Flasar, A. Mamoutkine, P. Romani, B. J. Buratti, A. R. Hendrix, L. J. Spilker, R. M. C. Lopes (2006). Cassini Encounters Enceladus: Background and the Discovery of a South Polar Hot Spot. Science, Vol. 311. no. 5766, pp. 1401 - 1405. Laço DOI.


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