segunda-feira, abril 09, 2007

Aquecimento global extraterrestre

Alguns amigos meus falaram-me com um certo prazer perverso de um estudo que, segundo eles, talvez ponha em causa essa coisa da actividade humana como causadora do aquecimento global. Já que o tema do mês na Roda de Ciência é o aquecimento global, decidi que valia a pena falar desse tal estudo.

Sucede que algures no sistema solar há um planeta que tem perdido quantidades significativas de uma das suas calotas polares. Estudos científicos apontam como causa desse desaparecimento um fenómeno de aquecimento global que teria elevado a temperatura média de superfície desse planeta qualquer coisa como 0.65 graus Celsius nos últimos 20 anos. Qual é esse planeta? Pois bem, trata-se do quarto planeta a contar do Sol. Não, não é um engano, Marte parece atravessar de facto um período de aquecimento global estranhamente parecido ao da Terra. [... ler mais]

O artigo que discute os problemas de temperatura marcianos é da autoria de Lori Fenton e colegas e foi publicado recentemente na revista Nature (ref1). Crânios à parte, em Marte a culpa não pode ser dos humanos e das suas emissões de gases de efeito estufa. As coisas parecem estar associadas a mudanças na distribuição da poeira na superfície do planeta. Numa tradução livre do resumo:

Ao longo de centenas de anos, os cientistas seguiram as mudanças na aparência de Marte, primeiro através de desenhos à mão e mais tarde através de fotografias. Devido a este registo histórico, sabe-se há muito tempo que muitos dos padrões clássicos de albedo têm mudado em aparência ao longo do tempo.

O que é o albedo? Da definição de planeta que se aprende nos primeiros anos de escola todos nos lembramos que no essencial refere que são astros que não possuem luz própria e que o seu brilho provém da reflexão da luz do Sol. Dito de outra maneira, os planetas brilham essencialmente com luz emprestada. O albedo é dado pela intensidade da luz emitida pelo planeta dividida pela intensidade da luz que lhe chega do Sol. Trata-se da fracção de energia incidente no planeta que é reflectida de volta.
Variações do albedo da superfície de Marte ao longo de décadas são geralmente atribuídas à remoção e deposição de pequenas quantidade de poeira relativamente brilhante na superfície. Observaram-se grandes extensões da superfície (até 56 milhões de quilómetros quadrados) a escurecerem ou clarearem por 10 por cento ou mais. Não se sabe, contudo, como essas mudanças no albedo irão afectar a circulação dos ventos, o transporte de poeira, e os processos de auto-alimentação entre esses processos e o clima marciano.

O estudo refere dois conjuntos de medições do albedo na superfície de Marte, que se ilustram na imagem abaixo. No painel de cima mostram-se dados do instrumento Thermal Emission Spectrometer (TES) na missão espacial Mars Global Surveyor obtidos nos anos 1999 e 2000. A escala de cores foi escolhida por forma a reproduzir o aspecto algo ferrugento da superfície de Marte. No painel de baixo mostram-se as diferenças dessas observações em relação a observações obtidas pelas sondas Viking cerca de 20 anos antes (1976-1978).

Na figura de baixo os tons de azul escuro indicam regiões que perderam brilho (escureceram), enquanto que os tons mais próximos do amarelo indicam regiões que reflectem uma fracção maior da luz incidente (clarearam). É evidente a partir do painel de baixo que Marte sofreu um processo quase generalizado de escurecimento, mais intenso a latitudes mais elevadas, com apenas umas poucas regiões a mostrarem clareamento significativo.

Ora qual o impacto que estas mudanças de albedo poderão ter no clima marciano? Para responderem a essa questão os autores do estudo usaram modelos atmosféricos, se bem que algo diferentes dos que se usam para a Terra. Em Marte não há oceanos nem cobertura vegetal, e as nuvens não têm a importância que têm na Terra.
Apresentamos aqui as previsões de um modelo de circulação geral de Marte, indicando que as alterações interanuais observadas no albedo influenciam fortemente o ambiente marciano. Os resultados indicam um aumento da intensidade dos ventos nas áreas escurecidas recentemente e um decréscimo das intensidades do vento em zonas que clarearam, produzindo um sistema de retroalimentação positiva no qual as mudanças do albedo intensificam os ventos que produzem as mudanças. As simulações também prevém um aquecimento global anual das temperaturas do ar à superfície de aproximadamente 0.65 K,

O texto do resumo não é claro, mas os autores esclarecem, numa pequena adenda ao artigo, que os tais 0.65 kelvin (iguais a 0.65 graus centígrados) se referem ao período de 20 anos, não à variação anual. O mecanismo de variação da temperatura é simples: a rocha escura (com pouca poeira brilhante) retem mais calor, que aquece a atmosfera. A atmosfera aquecida por sua vez leva a ventos mais fortes que por sua vez levam ao aparecimento de turbilhões que carregam poeira e a depositam num número reduzido de bolsas, descobrindo mais rocha escura.

Eis aqui abaixo uma figura que compara as medições da variação do albedo (a imagem) com as variações previstas para a temperatura (os contornos a vermelho):

Como podemos ver nas regiões de aumento do albedo (tons de amarelo) o modelo obtém variações de temperatura negativas, enquanto nas regiões escuras o modelo indica aumentos de temperatura. O aquecimento é sentido em particular nas zonas próximas dos pólos, e aí os autores oferecem evidência observacional que está de acordo com os resultados do modelo:
Para além disso, os aumentos previstos nas temperaturas do ar no verão a latitudes elevadas no sul contribuiriam para o retrocesso rápido e estável que se tem observado no gelo residual do pólo sul durante os quatro últimos anos marcianos. Os nossos resultados sugerem que as mudanças de albedo documentadas afectam o clima recente e os padrões meteorológicos a larga escala em Marte, e que as variações de albedo são uma componente necessária de futuros estudos de clima e da atmosfera.

Na Terra o albedo é uma quantidade variável que vai depende de uma série de coisas óbvias, como a extensão de neve e gelo, da cobertura e tipos de nuvens, da cobertura vegetal. É no entanto difícil de estimar. Uma das formas de determinar as mudanças do albedo terrestre é, por estranho que possa parecer, usar as regiões da Lua nas quais seja noite e que recebam luz da Terra.

Como disse no início da contribuição, há um estranho paralelismo com a situação na Terra. Embora os autores do artigo não o façam, algumas das pessoas com as quais falei levaram esse paralelismo ao passo lógico seguinte: atribuir o aquecimento nos dois planetas a uma mesma causa. Sinto, no entanto, que essa tentação deve ser evitada. A atmosfera de Marte é muito diferente da da Terra, e o mecanismo de aquecimento também. Em particular pode tratar-se de um fenómeno cíclico, iniciado e interrompido pelas grandes tempestades de poeira que de vez em quando varrem Marte.

O clima terrestre é afectado por uma míriade de influências distintas, e enquanto algumas, como o forçamento pelo dióxido carbono, são conhecidas com razoável precisão, coisas como os forçamentos por aerossóis e os efeitos da actividade solar são algo incertos. Os resultados de Marte poderiam mostrar-se relevantes para o problema do aquecimento terrestre caso se conseguisse mostrar que tinham a ver com algum tipo de modificação na actividade solar. No entanto, não se conhece neste momento nenhum mecanismo de tipo causa-efeito que envolva a variabilidade solar que explique as observações. Sem um mecanismo físico por trás, uma coincidência deve ser encarada apenas como isso. Claro que as coisas poderão mudar com mais trabalhos sobre este tema, e esta é mais uma razão para continuarmos a estudar o que se passa em Marte.

Ficha técnica
Imagem de Marte no início da contribuição cortesia de NASA/JPL/Malin Space Science Systems retirada desta página da NASA.

Referências
(ref1) Lori K. Fenton, Paul E. Geissler & Robert M. Haberle (2007). Global warming and climate forcing by recent albedo changes on Mars. Nature 446, 646-649. Laço DOI.

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