segunda-feira, outubro 23, 2006

Alguns asteróides são como as cerejas

Dos planetas "a sério" apenas Mercúrio e Vénus não possuem luas. Se a Terra e Marte são modestos, e se ficam por apenas um ou dois companheiros, os planetas jovianos preferem um grande séquito. Mesmo alguns dos agora chamados planetas-anões não dispensam companhia. Plutão é orbitado pelo barqueiro do inferno, pela serpente com muitas cabeças, e pela noite. Éris tem uma companheira ilegal. Alguns dos objectos mais pequenos, na categoria dos asteróides ou pequenos-corpos, também se passeiam no sistema solar acompanhados de objectos menores. Esse é o caso de um objecto ou, melhor dizendo, um par de objectos, conhecido como Asteróide (66391) 1999 KW4. [... ler mais]

Trata-se de um dos objectos vizinhos da Terra que apresentam um risco potencial de colisão com o nosso planeta, embora não nos próximos 1000 anos. Em Maio de 2001 passou a menos de 5 milhões de km da Terra, o que permitiu um estudo detalhado, a partir de observações de radar da antena de Goldstone na Califórnia, com 70 metros, e da antena de 305 metros de Arecibo, em Porto Rico. A antena de 70 metros é bastante móvel, o que permitiu seguir o KW4 durante 8 horas por dia, durante cerca de uma semana. A antena de Arecibo tem mobilidade mais limitada mas, sendo maior, tem melhor resolução.

Juntando os dois instrumentos foi assim possível construir um modelo do aspecto dos dois objectos com muito boa resolução, da ordem dos 15 metros, e por outro lado, ter uma cobertura sem precedentes das características rotacionais e orbitais de um sistema binário. S. Ostro e colegas decrevem os aspectos observacionais desse estudo num artigo que está para publicação na Science (ref1). Numa tradução livre do resumo:

Imagens de radar de alta-resolução mostram que o asteróide próximo de Terra (66391) 1999 KW4 é um sistema binário. O primário (Alfa) com um diâmetro de 1.5 km é um agregado gravitacional não consolidado com um período de rotação de ~ 2.8 horas, densidade média de ~2 gramas por centímetros cúbico, uma porosidade de ~ 50%, e um formato oblongo dominado por uma aresta equatorial no mínimo de energia potencial do objecto. O secundário com diâmetro de ~0.5 km (Beta) é alongado e provavelmente mais denso que Alfa. A sua órbita média em torno de Alfa é circular com um raio de ~2.5 km e um período de ~17.4 horas, e a sua rotação média é síncrona com o eixo maior apontando nas direcção de Alfa, mas os desvios dessa orientação devidos a libração são evidentes. Propriedades físicas e dinâmicas exóticas podem ser comuns nos binários próximos da Terra.

A rotação do primário é assombrosa. Notem que é de tal forma rápida que bastaria um pequeno empurrão ao material à superfície para entrar em órbita. Em comparação com a Terra, é como se os satélites geostacionários estivessem a uma altitude de 60 km, em vez dos cerca de 37,000 km a que se encontram. A forma bojuda do primário faz pensar num pião, uma analogia ainda mais óbvia quando se vê este filme (4.6Mbytes), cortesia de um dos autores do artigo. A animação mostra uma perspectiva do sistema tal como seria visto da Terra em Maio de 2001, incluindo o ângulo correcto para a iluminação solar.

A vantagem de um sistema binário é que se consegue determinar as massas dos componentes, a partir das suas características orbitais. Como se tem imagens também se consegue determinar o volume, e logo a densidade. A partir de observações em comprimentos de onda na banda do visível foi ainda possível determinar a composição, o que permitiu aos investigadores verificar que o primário do KW4 é muito poroso. Em vez de um bloco sólido de rocha trata-se de uma espécie de grande pilha de detritos que se mantêm agregados devido à gravidade. Isso explica também a forma bojuda: uma partícula colocada na superfície de Alfa procuraria o equador que, apesar de ser o ponto mais distante do centro, é na verdade o ponto de menor altitude. Não se tem a certeza sobre como Alfa se terá formado, mas provavelmente terá a ver com efeitos de maré, devidos a uma aproximação muito próxima a um planeta.

Este sistema é interessante pois mais nenhum dos outros binários estudados, até à data, é formado por objectos assimétricos e desagregados, com interiores porosos e não rígidos, cuja forma e propriedades poderão variar com a mudança das suas propriedades orbitais. O KW4 vai passar ainda mais perto da Terra em 2036, e é um objecto apetecível para uma missão espacial, quanto mais não seja pelo desafio que representa calcular a trajectória de um terceiro objecto, e pousar em algo com estas propriedades fisicas, e com este tipo de dinâmica orbital. Cerca de um em cada seis objectos próximos da Terra com mais de 200 metros de diâmetro são sistemas binários, e é possível que muitos deles partilhem algumas das características do KW4.

Ficha técnica
Imagem no início da contribuição e filme obtidos a partir desta página da NASA.

Referências
(ref1) S. J. Ostro, J.-L. Margot, L. A. M. Benner, J. D. Giorgini, D. J. Scheeres, E. G. Fahnestock, S. B. Broschart, J. Bellerose, M. C. Nolan, C. Magri, P. Pravec, P. Scheirich, R. Rose, R. F. Jurgens, E. M. de Jong, and S. Suzuki (2006). Radar Imaging of Binary Near-Earth Asteroid (66391) 1999 KW4. Science, no prelo. Laço DOI.

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