sábado, outubro 21, 2006

Ó tu que não és senão cera


Ó tu que não és senão cera, cera que se apodera e rouba pela violência, que vive daqueles que estão inertes , eu não estarei inerte, para ti, eu não estarei sem forças, para ti; o teu veneno não entrará nos meus membros, pois os meus membros são os membros de Atum; se tu não estás sem forças eu também não estarei sem forças para ti, o teu entorpecimento não entrará nos meus membros.

Eu sou Atum no Nun; a minha salvaguarda é constituída por todos os deuses, eternamente. Eu sou alguém cujo nome é secreto, no lugar mais prestigioso que há; eu estava entre eles os dois, quando saí com Atum. Eu sou aquele que não foi contado, pois eu sou completamente incólume.

Alguns leitores estarão porventura a interrogar-se sobre o que terá esta ladaínha a ver com Astronomia, e com o pontinho marcado com uma seta na imagem. Pois bem, trata-se de uma tradução para português de uma oração muito antiga, com que eu me deparei hoje, quando estava a ler o Livro dos Mortos do Antigo Egipto. É uma fórmula mágica que ensina a passar a serpente maligna que espera o morto quando o cortejo fúnebre chega ao túmulo, no Ocidente. A ligação à Astronomia é um pouco mais óbvia quando se fica a saber que esta é a "Fórmula para evitar o dorso abominável de Apófis."[... ler mais]

Quando li o nome Apófis lembrei-me do 99942 Apófis (2004 MN4), o asteróide que se indica com uma seta na imagem no início da contribuição. Este asteróide é famoso pois foi classificado com um valor acima de zero na escala de Turim, que mede o nível de ameaça de impacto com a Terra, e os efeitos de um tal impacto. Falei aqui do Apófis, no longínquo dia 6 de Março de 2006, onde referi que havia uma muito pequena hipótese de atingir a Terra em 2036, 2037, ou 2054. O 99942 Apófis mede menos de 400 metros e foi descoberto em Junho de 2004, "perdeu-se" durante algum tempo e foi redescoberto em Dezembro de 2004. Os cálculos da órbita nessa altura revelaram que o asteróide tinha uma trajectória que iria passar muito próximo da Terra no dia 13 de Abril de 2029. Estes cálculos foram melhorados com observações subsequentes de radar de Arecibo, e a circular 8477 da IAU de 4 de Fevereiro de 2005 referia:
Astrometria de atraso Doppler de Arecibo obtida a 27, 29 e 30 de Janeiro de 2005 refina significativamente a órbita do 2004 MN4. A 29 de Janeiro a distância era 294 km mais próxima da Terra do que a solução orbital anterior ao radar previa. Esta correcção resulta numa aproximação em 2029 ao centro da Terra de apenas 36,700 +/- 9,000 km, o que é um pouco abaixo da órbita geossíncrona e 28,000 km mais perto do que o previsto pelas efemérides anteriores ao radar.

Estas observações permitiram reduzir significativamente o erro, mas a previsão do comportamento do objecto após a aproximação era ainda um pouco incerto. A rotação do objecto irá ser alterada com o encontro com a Terra, bem como a sua órbita. Um segundo conjunto de medições obtidas a 7 de Agosto de 2005, é referido na circular 8593 da IAU, a que foram acrescentadas observações de 6 de Maio de 2006, mais uma vez de Arecibo. Este novos valores foram comunicados na circular 8711 da IAU de 17 de Maio de 2006:
Uma estimativa da órbita incorporando as novas medições de efeito Doppler com as 779 medições no óptico que vão de 15 de Março de 2004 a 26 de Março de 2006, conjuntamente com quatro medições Doppler e duas medições de alcance de 2005, aumentam a distância de aproximação ao centro da Terra em 13 de Abril de 2029 por 450 km.

Como vemos os cientistas desta vez juntaram apenas algumas centenas de km à órbita do Apófis, em vez dos 28,000 da correcção anterior. As órbitas possíveis levam o Apófis a passar a uma distância mínima da Terra em Abril de 2029 de 36,200 +/- 8,700 km. Toda esta preocupação tem a ver com o prever da órbita do asteróide após esta aproximação da Terra:
a distância prevista para a maior aproximação da Terra em 2036 aumenta de 0.168 para 0.276 UA, colocando a possibilidade de um encontro com a Terra numa região de baixa probabilidade na distribuição das órbitas possíveis.

O que isto no fundo quer dizer é que estamos safos, o Apófis vai seguramente falhar a Terra em 2036 também. Os observadores em Portugal em 2029 poderão assim observar sem grandes angústias o asteróide que deverá ser razoavelmente brilhante no céu, visível mesmo a olho nu.

Embora o asteróide vá falhar a Terra, não deixa de ser importante continuar a segui-lo. Uma forma simples de conhecer a órbita com grande precisão seria colocar um simples emissor no objecto, que nos permitiria saber a posição e distância ao Apófis com grande segurança. A melhor altura para isso seria em 2029 quando ele passa mesmo aqui ao lado. A Planetary Society propõe-se a fazer algo do género, e tem mesmo uma página aberta a sugestões. Se alguém tiver uma ideia de como se pode fazer uma coisa dessas não hesitem, há mesmo um prémio em dinheiro:
Uma missão para marcar um asteróide nunca foi estudada anteriormente. A Competição do Conceito de Missão a Apófis da Planetary Society irá inspirar as pessoas a inventarem planos práticos e realizáveis, não apenas as ideias que as pessoas já avançaram, mas também para aquelas ainda por imaginar.

Vamos apoiar este concurso com uma recompensa em dinheiro de $50,000 (EUA), conjuntamente com a possibilidade aliciante de que a NASA ou outra agência espacial vá realmente trasnformar o conceito numa missão a sério.

Há contudo limites aos que se deve propor, deve estar dentro do razoável em termos tecnológicos e de custo:
Determinámos já a maior parte dos critérios para a competição. Os concorrentes devem conceber uma missão que se possa aproximar de Apófis, colocar lá o equipamento necessário, e fornecer aos astrónomos a informação de que eles vão necessitar para determinar se o asteróide é uma ameaça real ou não. O plano da missão terá que preencher constrangimentos da missão realistas -- desde o peso da sonda ao custo global -- e terá que poder ser feito rapidamente para dar tempo à humanidade de construir uma missão para deflector o asteróide, caso seja necessário.

Como eu indiquei acima, com o Apófis estamos safos, pelo menos nos tempos mais próximos, mas há uma imensidão de objectos potencialmente perigosos que convirá monitorizar. Esta é uma boa oportunidade para testar tecnologia e engenho.

Apófis era o deus do caos e da desordem do Egipto, que sob a forma de uma serpente esperava todos os dias a chegada do Sol (Ré) no Ocidente, contra o qual combatia ferozmente. Apenas a força de Ré, e o fervor religiosos dos sacerdotes e do povo egípcio através das suas orações, permitiam que o Sol sobrevivesse ao encontro e voltasse a nascer no dia seguinte.


Não deixa de ser um pouco emblemático, do ponto de vista da evolução da humanidade ao longo dos últimos milhares de anos, que para afastarmos esta serpente não nos fiemos em orações ou fórmulas mágicas, mas sim na ciência e na tecnologia.

A Astronomia nos últimos tempos tem tido a sua cota de nomes sombrios (Nix, Hidra, Éris, Disnomia), mas suponho que seja só coincidência. Não resisto a notar que há sempre a possibilidade de que os descobridores do 99942 Apófis tenham querido homenagear uma série televisiva (um pouco como no caso da Xena que agora se chama Éris). É que Apófis era o vilão no filme e nas primeiras épocas televisivas de StarGate-SG1, uma série de ficção científica com uma vida relativamente longa, e bastante popular.

Adenda mitológica
Atum era o Espírito que estava encerrado no caos da matéria, Nun, de acordo com o mito da criação egípcio. Atum conseguiu libertar-se, modelar o caos e dar-lhe um nome. Foi então que se tornou Ré (Rá é por vezes utilizado mas é incorrecto em português).

Ficha técnica
As circulares da IAU podem ser consultadas a partir desta página.
A imagem do Apófis vem directamente do Osservatorio Astronomico Sormano. O original é uma sequência de três imagens que mostra o movimento do asteróide contra o fundo de estrelas.

Referências
O Livro dos Mortos do Antigo Egipto. Tradução de Maria Helena Trindade Lopes. Assírio e Alvim (1991).

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