Nem de propósito. Esta imagem mostra uma paisagem de Titã, obtida em 27 de Outubro de 2005, com o radar a bordo da sonda espacial Cassini. As estrias são o equivalente titaniano das dunas terrestres, e as regiões mais claras são elevações. Na quarta-feira referi que a astronomia tinha estado um pouco ausente do Cais de Gaia nos últimos tempos, e mostrei algumas das espectaculares panorâmicas obtidas pela sonda espacial Cassini no sistema saturniano. Uma das imagens era de Titã, que como eu referi é um dos meus corpos favoritos no sistema solar. Pois bem, saiu hoje um artigo sobre a descoberta de grandes complexos de dunas em Titã. [... ler mais]
O artigo é da autoria de R. D. Lorenz e colegas, e saiu na Science de hoje (ref1). Numa tradução livre do resumo:As mais recentes imagens de RADAR na Cassini mostram vastas regiões (até 1500 km por 200 km) de padrões lineares quasi-paralelos e escuros ao radar que parecem ser mares de dunas longitudinais semelhantes às que se podem ver na Terra no deserto da Namíbia. As imagens na banda-Ku (comprimento de onda de 2.17-cm) mostram cristas de ~100 metros consistentes com formas dunares e revelam interações do fluxo com as colinas circundantes.
As dunas na Terra têm um aspecto em tudo semelhante, incluindo serem escuras quando observados por radar no mesmo comprimento de onda, tal como se pode ver abaixo numa imagem obtida por um instrumento a bordo do vaivém espacial acima do deserto da Namíbia.
Uma análise quantitativa da morfologia das dunas em Titã, mostra que estas dunas são de facto semelhantes às do deserto da Namíbia, com origem deposicional, e que as estrias não de devem à erosão de um qualquer substrato. As dunas de Titã mostram ainda um padrão de deposição em torno dos obstáculos (colinas) semelhante ao que se observa nas dunas longitudinais na Terra. Mais adiante: A distribuição e orientação das dunas apoiam um modelo de ventos de superfície oscilantes de ~0.5 metros por segundo resultantes da combinação de um fluxo para leste com vento variável com origem em marés.
Embora a fraca gravidade de Titã, e a atmosfera cerca de duas vezes mais densa que a da Terra, façam de Titã um ambiente adequado para o transporte de partículas pelo vento, pois a velocidade do vento necessária para levantar as partículas do solo é razoavelmente baixa, a luz do Sol que chega a Saturno é fraca, e os ventos de superfície que resultariam dos gradientes térmicos seriam também fracos. A presença destas dunas exige uma origem alternativa para os ventos. Segundo os autores, os ventos na superfície de Titã não resultam apenas de fenómenos ligados ao aquecimento pela luz do Sol mas são sobretudo devidos às forças de maré que Saturno exerce sobre a atmosfera de Titã. Para referência convém dizer que a gravidade de Saturno tem um efeito em Titã cerca de 400 vezes maior que a gravidade da Lua na Terra. O resumo termina com questões relativas aos processos que formam a "areia" nestas dunas.A existência das dunas exige também processos geológicos capazes de criar partículas com as dimensões dos grãos de areia (100 a 300 micrómetros) e a ausência de líquidos de superfície persistentes para capturarem a areia.
A ausência de líquidos foi confirmada pela Cassini, e pela sonda Huygens, que pousou na superfície de Titã em Janeiro de 2005, que não encontraram os tão esperados "mares de metano". Sem estes mares para funcionarem como um sumidoiro de areia, as partículas podem então acumular-se e cobrir vastas áreas da superfície desta lua. Os autores notam que as dunas poderão cobrir practicamente toda a região equatorial de Titã. A latitudes mais elevadas os autores especulam que um ambiente mais "húmido" impede a formação das dunas.
A composição das dunas não é conhecida, os candidatos mais prováveis são sólidos orgânicos, gelo de água, ou uma mistura de ambos, e os mecanismos que as criaram não são claros. Os autores do artigo especulam que se poderá dever a actividade de tipo fluvial. Apoiam esta sugestão nas observações pela Huygens de inúmeros calhaus arredondados. Mas as coisas exigem ainda estudos muito aprofundados, tal como os autores notam nas conclusões:A extensão dos mares de areia exige uma origem para 104 a 105 km cúbicos de material com as dimensões de grãos de areia, bastante mais do que poderia ser produzido por material proveniente de impactos. Pode ser que a erosão de um leito de gelo por metano líquido seja capaz de produzir este material fino. Este teria então que secar, colocando constrangimentos na meteorologia de Titã. Uma origem alternativa, talvez apoiada pela aparência opticamente escura dos mares de areia, é a fotoquímica do metano na estratosfera de Titã, que ao longo dos 4.5 mil milhões de anos de história do sistema solar poderia ter produzido 106 a 107 km cúbicos de hidrocarbonetos e nitrilos, 10% dos quais seriam sólidos.
Há ainda muito para descobrir e estudar em Titã. Os autores concluem o artigo com uma frase que traduz fielmente o meu estado de espírito após ter lido este trabalho:Contudo, a morfologia destas belíssimas estruturas, que nos são familiares das regiões áridas da Tera, é um sinal reconfortante de que embora o ambiente e os materais em Titã sejam exóticos, os processos físicos que moldam a superfície de Titã possam ser compreendidos e estudos aqui na Terra.
Termino então com uma imagem do deserto da Namíbia, tirada a bordo do Vaivém espacial, uma paisagem em alguns aspectos semelhante à que poderemos encontrar num outro mundo do nosso sistema solar.
Referências
(ref1) R. D. Lorenz, S. Wall, J. Radebaugh, G. Boubin, E. Reffet, M. Janssen, E. Stofan, R. Lopes, R. Kirk, C. Elachi, J. Lunine, K. Mitchell, F. Paganelli, L. Soderblom, C. Wood, L. Wye, H. Zebker, Y. Anderson, S. Ostro, M. Allison, R. Boehmer, P. Callahan, P. Encrenaz, G. G. Ori, G. Francescetti, Y. Gim, G. Hamilton, S. Hensley, W. Johnson, K. Kelleher, D. Muhleman, G. Picardi, F. Posa, L. Roth, R. Seu, S. Shaffer, B. Stiles, S. Vetrella, E. Flamini, R. West (2006). The Sand Seas of Titan: Cassini RADAR Observations of Longitudinal Dunes. Science, Vol. 312. no. 5774, pp. 724-727. Laço DOI.
sexta-feira, maio 05, 2006
Os mares de dunas de Titã
Por CDG laço permanente
Etiquetas: Saturno e suas luas
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